terça-feira, 23 de abril de 2024

 Te vojo bene assaje

Hoje acordei embalado pela lembrança de CARUSO, na belíssima voz de Bocelli: "Guardò negli occhi la ragazza / Quegli occhi verdi come il mare / Poi all'improvviso uscì una lacrima / E lui credette d'affogare". E de repente, uma lágrima caiu, e ele pensou que estava se afogando. E me vi perdido em meus pensamentos, memórias, dores e sonhos. 

A sensação era de quem se afogaria naquela lágrima, tal era a dor que parecia partir a minha alma ao meio. Nada mais parecia valer a pena, a vida parecia se esvair, como em Caruso. Num relance de eternidade, vivi num instante o que Enrico Caruso precisou de uma vida inteira para experimentar: A alegria por ser/ter amado muita vezes, sofrido ... E de repente me sentia feliz, e me peguei cantarolando: "Te voglio bene ... Ma tanto, tanto bene, sai". 



quarta-feira, 20 de março de 2024

OUTONO




As estações do ano servem de metáforas para roda da vida. Podemos vive-las inclusive todas num curto espaço de tempo. No verão e na primavera é possível viver intensamente a alegria, a descontração e as cores mais vibrantes. No inverno o mundo parece inóspito, um deserto desesperador. 

Entramos agora no outono, estação rica em lições. Nesta estação dias e noites se equivalem, há quedas das folhas, talvez sua imagem mais marcante, mas é também a estação dos frutos. Por estar entre o verão e o inverno vivemos algumas coisas bastante peculiares: a instabilidade nas temperaturas, incluindo a possibilidade de nevoeiros – a nossa própria existência em determinados momentos segue exatamente esta regra: quando deixamos de ser crianças e ainda não somos adultos, vivemos a riqueza e instabilidade da adolescência. Quando vivemos a transição da idade adulta para a maturidade caímos na crise da meia-idade. Há outra lição extraordinária do outono é uma tendência de sonhar com os dias idos do verão, das cores, do prazer e a tentativa inútil de tentar não pensar no inverno que se avizinha e que pode amedrontar.

Lembramos com alegria, e certa nostalgia, do verão que se foi, mas que voltará. Fazer a preparação para o inverno já antevendo a beleza da primavera é o desafio existencial. “o que a lagarta chama de fim, o resto do mundo chama de borboleta” (Lao Tzu). Bem-Vindo outono!

quinta-feira, 14 de março de 2024

MÁQUINA DE MOER REPUTAÇÕES



Foi lançada uma série documental que promete revelar a máquina de moer reputações e quem são seus operadores. Na era da pós-verdade é fundamental que sejam denunciados os maquinadores e financiadores desses entes diabólicos. Aproveitando a ocasião quero surfar no tema e dizer que essa indústria é mais antiga do que se pensa. Tem sido uma tendência colocar o nome das leis que combatem crimes a partir de casos e vítimas emblemáticas, venho sugerir que se faça um reconhecimento de Maria Madalena como a patronesse ou padroeira de todos os que tiveram as suas reputações moídas. Justifico, afirmando que nenhuma outra personagem teve a sua reputação manchada por tanto tempo como esta nobre senhora.

Já passaram mais de mil e quinhentos anos a calúnia do suposto adultério de Madalena. Sabedores da sua liderança no corpo apostólico e com receio que isso inspirasse outras a invadir o espaço reservado aos homens na hierarquia da igreja, era fundamental manchar a sua honra e a sua história. Assim nasce, séculos depois da sua morte, a má-fama de adúltera. Qual a base documental ou testemunhal de tal fato? Uma meia-verdade, distorcida e pronto a máquina de moer reputações estava operando. Assim Madalena virou sinônimo de adúltera. Havia uma mulher apanhada supostamente em ato de adultério e perdoada por Jesus e havia uma seguidora chamada Madalena, pronto era só sobrepor as histórias e de uma meia verdade se faz uma mentira completa. Séculos de acusação e ninguém parecia se importar em investigar a verdade, que estava bem ali nas páginas dos evangelhos.

Só quem morreu na fogueira sabe o que é ser carvão e assim é inegável que esta vítima e sua história milenar pode servir como símbolo de combate as milícias que destroem reputações que são construídas por toda uma vida. Tendo reconhecida a nossa patronesse, quero destacar que a máquina só funciona porque além dos seus operadores e financiadores, há os consumidores. Muita gente mansa, caridosa e com reputação acima de qualquer suspeita, em nome dos seus valores age como consumidor de reputações moídas, que são servidas na mesa de jantar diariamente.

Na sociedade das subcelebridades parece que as únicas reputações que interessam são aquelas expostas na mídia. Mas há máquinas portáteis tão destruidoras de reputações quanto aquelas do escritório do crime, com a diferença de que seu alcance atinge o microcosmos em que habitam suas vítimas. Quantos cancelamentos inexplicáveis, quantas amizades rompidas, quantas portas fechadas, e tudo por causa dessas máquinas portáteis, mas devastadoras de vidas. Confrontar seus construtores, operadores e patrocinadores é importantíssimo, mas é preciso dizer que os consumidores são tão responsáveis quanto e que este produto só faz sucesso porque há um público ávido por consumi-lo.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Desejo de AMAR


Desejei amar ... e numa tentativa inútil tentei gerá-lo dentro de mim. Mas me dei conta, daquilo que os gregos já sabiam desde muito tempo, tempos imemoriais. A amor é o néctar de Deus e que Ele concede aos seus filhos/as o privilégio de provar da sua essência (Rm 5:5). Mas para recebê-lo é preciso construir cálices numa mistura perfeita entre ouro e sonhos, num simbolismo daquilo que nos é mais caro (Lc 9:23-26). Só é possível construir com fé, muita paciência e uma criatividade artística acima, muito acima da média até que se encontre a medida adequada, que dê a liga necessária e a beleza reluzente e cativante.

Após essa preparação com altíssimo custo, o néctar é derramado até transbordar. Antes de prosseguir é preciso avisar que ao tocar o cálice, o néctar ardente, o derrete. Este se desfaz antes que se deguste o primeiro gole. Surge aqui o primeiro grande obstáculo para se deliciar com o seu dulçor. Muitos se apaixonam tanto pela beleza hipnotizante do cálice que se recusam a enchê-lo e vê-lo derreter, por isso optam por um similar, artificial. Um afeto de laboratório que simula as reações do verdadeiro amor, mas sem ter que abrir mão de nada, a não ser do próprio amor. O verdadeiro néctar, ardente, derrete o cálice, escorrendo em todas as direções, inundando o mundo de emoções. Alcança a todos e todas, muitos/as que nem sabem da sua real existência e do seu valor, por isso o usam, o manipulam e nos machucam. Aqui reside um outro grande obstáculo: o medo da dor e do sofrimento. E numa tentativa de evitar tal mal, vestem couraças que não lhes permitem serem tocados pelo néctar ardente. Se não sentem a sua dor, também é verdade que não o sentem em todo o seu fulgor.

Hoje terminei meu cálice, uma obra-prima, maravilhosíssimo. É uma pena saber que não resistirá quando o néctar for derramado nele, desaparecerá por completo. Mas ao mesmo tempo será uma experiência extraordinária, vale à pena. Será maravilhoso ver e sentir o transbordar com toda a sua força, seguindo em todas as direções, inundando o mundo de emoções, vendo os corações se elevarem e se iluminarem. Por sua força criativa tornar aqueles/as que dele bebem em artistas que amam e criam sem medo de errar ou de se machucar, uma nova realidade, um paraíso, ao menos para os amantes. 


terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Hoje eu Acordei Velho

 


Hoje eu acordei Velho

A vida é feita de pausas. As pausas acontecem para evitar o cansaço ou por causa dele. Fato é que vez por outras a gente cansa. Não falo do cansaço físico, falo de uma certa e branda desesperança. Aquela ideia que passa pela cabeça (ou coração) de que não vale a pena. Faço ideia, por causa dela, do que seja uma pessoa desesperançada e entendo por conta disso entendo o último ato de uma pessoa desesperada.

É, a gente cansa. Quando isso acontece a alvorada ganha cores de ocaso e a 5ª sinfonia de Beethoven se converte numa marcha fúnebre. Todo fragmento de esperança é visto com cinismo e toda frase alegre tem sempre uma conjunção adversativa. A gente já acorda cansado, o dia se alonga, mas nunca é o suficiente para dar vencimento as suas demandas. A gente acorda sem vontade de acordar.

Estou no modo PAUSA. Amanhã quem sabe eu renasço, revigorado e pronto para o novo ciclo.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Monopólio do Sagrado: Delírio ou Estelionato

 A coisa mais nefasta da religiosidade de mercado não é preço da commoditie celestial. Mas o fundamento que justifica o preço: o monopólio do sagrado. Com a alta demanda por produtos como milagre, absolutamente necessário em virtude das múltiplas tragédias que nos cercam: acúmulo indecente do capital, pela expropriação, pela exploração, pela banalização da violência, pelo desprezo com a vida humana, pelo abandono, etc., a que estão relegados os excluídos, e na tentativa de tornar a vida ao menos suportável, com uma oferta bastante escassa, ao menos do produto genuíno, cria-se o ambiente absolutamente favorável ao surgimento de produtos sem eficácia, de placebos, falsificados, etc.

Um dos gargalos que beneficia a Religiosidade de Mercado é a Auto-regulamentação, ou seja, a indústria da fé é a responsável por atestar a autenticidade dos seus produtos, e é ela quem determina quem são os “infiéis”. Quem já não viu o sensor na TV chamando a todos os que dele discordam de “esquerdopatas” ou coisas do gênero?

O depoimento do Senhor Wizard à CPI da Covid escancara a porta do quarto mais secreto na fábrica da picaretagem religiosa. Mostra que os produtos tidos como genuínos não resistem ao menor teste de qualidade. Exposto a um pouco de luz fez derreter a cera do engano. Aquilo que de longe, e especialmente longe do fogo, parece ser o mais fino produto e o mais excelente acabamento de uma obra perfeita.

Não se engane, Deus não se deixa aprisionar. Deus não está preso à fórmulas, a esquemas (nem mesmo e principalmente os religiosos). É sabido que Jesus não tinha predileção por religiosos nem se deixava enganar por discursos e nem mesmo determinadas práticas tidas como piedosas. Alertou os seus para o perigo dos falsos que falam e dizem agir em seu Nome. “Acaltelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós, vestidos como ovelhas, mas que no íntimo são lobos devoradores” (Mateus 7:15).  Ele disse ainda: “Nem todo que vive com o meu nome na Boca dizendo: Senhor, entrará no Reino” (Mateus 7:21).

Deus não é monopólio de ninguém e de nenhuma religião. Jesus revelou-se a todos e todas. Declarou fé invejável entre aqueles que não faziam parte da religião hegemônica no seu país: Elogiou um romano por sua fé, fez o mesmo com uma mulher cananéia. Diz, no Evangelho de Mateus 24 e 25 que dentre os que são elogiados no último dia estão pessoas que não pertencem ao espectro religioso hegemônico e que ficarão surpresas com o elogio e dirão: mas quando te fizemos isso? “O Espírito é livre e sopra onde quer e não sabes donde vem, nem para onde vai”. Deus não está nem lá, nem aqui, está entre. O resto é delírio ou estelionato.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O AMOR E A LÁGRIMA

 

O AMOR E A LÁGRIMA

Seu Hipólito era homem muito querido e respeitado, também era conhecido por ter uma saúde de ferro. Mas um dia, de repente caiu em cima de uma cama com mal incurável. Por seu histórico de boa saúde todos esperavam uma cura tão repentina quanto a doença. Mas os dias se passavam e o velho Hipólito só definhava sobre a cama e gemia de dores. A crença numa cura era cada vez menor entre os amigos e até a própria família. A única que ainda se aferrava a esta crença era Elvira.

Numa manhã cinzenta a velha curandeira chamou Elvira e lhe aconselhou: Minha filha, seu pai só está esperando que você o libere. Desagarre dele e o deixe ir, pare com esse sofrimento. Hipólito jazia numa cama, morre-não-morre. Dias, semanas e meses naquela agonia e sofrimento. Atendido o pedido da velha curandeira, Hipólito partiu naquela mesma tarde. Como nos conta Adélia Prado: “amor é a coisa mais alegre. Amor é a coisa mais triste”. A vida deu Hipólito como um presente, mas quem nos faz sorrir de amor, de amor nos mata ao partir. A coisa mais triste e mais maravilhosa no amor é aprender a deixar ir, abrir mão de dominar, se recusar a prender.

O amor não tem gaiolas, nem correntes. Amor é vento: livre, leve e solto. O amor engaiolado é como o ar engarrafado, não serve, nem tem frescor e nem emburra jangadas para as aventuras em alto mar. Amar é não ter garantias, o amor não pode ser declarado à priori, como eterno. Amar é não ter livros de contabilidade, é não esperar reciprocidade, afinal amor não se paga. Amar é abrir mão pelo bem estar do ser amado mesmo que isso custe uma lágrima.