quarta-feira, 13 de abril de 2011

Loucura

Além do limite da minha rua morava um louco, apelidado de “Zé Doido”, um homem forte, surgido não se sabe de onde, e pelas conversas dele, pelas parcas lembranças que pareciam lhe atormentar, fazia todos acreditarem que teria sido maquinista (condutor de trem). Certa vez, inocente como convém a uma criança, quase degustei com ele seu almoço. Isso me fez lembrar a cena de Auto da Compadecida quando a cachorra tão acostumada aos mimos da sua dona e experimenta a comida dos pobres, acaba morrendo. Creio que seria este o meu fim, se tivesse realizado a minha vontade naquele dia. Mas jamais se pode atribuir ao “Zé” qualquer ato de violência, senão quando se sentia agredido ou ameaçado.
Há outros nomes e rostos de outros “loucos” que vieram me visitar nesta tarde quente do verão baiano. Zé Eufrásio, dizem que enlouqueceu de amor, uma desilusão amorosa fez com que o outrora policial, agora vagasse pelas ruas como quem passa sempre por uma rua diferente, embora fossem as mesmas e poucas ruas da pequena Itinga da Serra. Tem a Zefinha e suas histórias da Rua do Carvão, chamando a todas as mulheres de “Iaiá”. Pobre Zefinha embora tão amável e querida por todos acabou assassinada por dois jovens, com requintes de crueldade.
Mas dos “doidos” da minha infância o mais intrigante sempre foi o “João da Cruz” e sua obsessão por trocar as coisas de lugar. Lá estava a Igreja Matriz, do Sagrado Coração de Jesus, instalada bem no centro da praça, mas eis que João da Cruz erguia sua voz e declarava: “Aquela igreja tinha que estar acolá, aquela escola tinha que estar ali” e pronto, os monumentos, as casas, as ruas, as praças como que num passe de mágica, mudavam de lugar. Passava os dias exercendo o seu oficio de engenheiro de obras prontas. Nada parecia ter sido construído ou colocado no lugar certo, ele tinha sempre uma modificação a fazer. Parecia dizer a todos que fosse ele o arquiteto e teria feito as coisas em lugares distintos daqueles em que foram construídos. Não se sabe ao certo porque razões, se estéticas, se práticas ou por mera preferência pessoal, mas fato era que não estavam no lugar certo, ao menos aos olhos de João da Cruz. Pobre João vagou insatisfeito pela vida reclamando, sem perceber a beleza das manhãs acinzentadas de inverno ao pé da serra, a beleza do pôr-do-sol alaranjado no horizonte e o céu todo estrelado nas noites quentes do sertão. Mas também pode-se dizer, rico João, compreendeu como ninguém que a vida é assim mesmo, inacabada, e que é preciso às vezes mudar e quando esta mudança não acontece lá fora, ao menos aqui dentro ela se dá.
Talvez o João da Cruz tenha lido Freud, talvez tivesse ainda com ele conversas ao pé do ouvido. Talvez tenha descoberto psicanaliticamente que a cura está na fala, que a fala põe de novo a casa em ordem, não a igreja, não a escola, mas põe em ordem a desordem interior. Talvez o João estivesse tentando organizar a sua vida, o seu mundo cão, caótico, trazendo alguma beleza e esperança onde só havia dor e destruição. Talvez o João tivesse ouvido Jesus e entendido que palavra desfaz o mal, desaloja o maligno e cria novos mundos. Talvez tenha resignificado o “sai dele” e quando dizia à igreja ou à escola: “saia daí”, estava se referindo à legião que nele se instalara e que o atormentava noite e dia. Na esperança que um dia, ainda que longínquo, seria ouvido e poderia quem sabe ainda que por uma única vez ter o seu desejo satisfeito e cada coisa no seu devido lugar.