domingo, 10 de maio de 2020

NINGUÉM MORRE UMA VEZ SÓ


A morte não sabe brincar. Todo dia eu a venço e no dia seguinte o jogo recomeça, mas o dia que ela ganha, o jogo acaba. Assim não tem graça. Não me proponho a falar da morte com pesar, nem como passagem para uma outra vida e nem nada que o valha. Quero, falar das mortes que tive que enfrentar antes de morrer. Por fim poderei, inspirado em Quincas Berro D’água, dizer quando a morte natural chegar: essa não é a primeira vez que morro.
Assim como no caso de Quincas, os outros podem decretar nossa morte. Se me lembro bem, na novela de Jorge Amado, a família decreta a morte de Quincas quando ele renuncia à vida que levava. Das mortes decretadas, pelo outro, e aqui me permito uma digressão - Jesus afirmou que isso era possível, ao dizer que quando construímos uma narrativa da vida do outro com a intenção de detratá-lo ou destruí-lo já foi cometido o assassinato[1], o matamos, a morte social, fruto dessa narrativa, está em alta em nossos dias.
De todas as mortes que já morri uma eu não consigo me acostumar, embora já a tenha experimentado algumas vezes, numa espécie de Déjà Vu. Me aconselha o sábio que “quando alguém disser alguma coisa a meu respeito que não corresponda à verdade, devo viver de tal forma que todos percebam que ele está mentindo”. Mas devo admitir que praticar a teoria do sábio, além de ser extremamente doloroso, é demorado e não há nenhuma garantia de que as pessoas ainda estarão prestando atenção quando a verdade vier à tona.
Poderia dizer que as mortes que morremos têm a função de nos permitir “reviver” mais sábios e, como diria Herzer, menina de rua e poetisa citada por Boff: “Eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver[2]”. A Bíblia dos Cristãos e Judeus diz que para se alcançar a sabedoria é preciso aprender a contar os dias[3], numa alusão ao aprendizado cumulativo, à famosa experiência de vida. O problema é quando somos românticos demais e cremos que as pessoas são diferentes e que agirão de formas diferentes em situações semelhantes, e temos que morrer muitas vezes e renascer outras tantas, num eterno retorno do mesmo[4].
A vida é uma grande brincadeira, no final o que conta é quantas gargalhadas dei, quantos momentos me surpreendi e perdi o fôlego, quanto amei ... Não será feita a conta de quantas vezes morri, mas de quantos matei numa tentativa vã de exorcizar a morte, que como eu disse não sabe brincar, basta ganhar uma vez e o jogo acaba.


[1] Mateus 5:22
[3] Salmo 90:12
[4] Nietzsche, Gaia Ciência.

Obrigado, MÃE


Existe uma fórmula para ser feliz: Não ame. Quem ama corre o risco de sofrer, de chorar sem razão, mas também de sorrir no meio de uma tarde de sol causticante, de viajar por espaços inimagináveis para lembrar de um gosto, de um gesto, de um sabor. Mas até isso nos faz sofrer (um sofrimento acalentado pela certeza de que é melhor sofrer de amor do que não amar).
Quem ama, morre um pouco quando pessoas amadas ficam encantadas. Morremos um pouco, parte de nós parte, histórias que completam aquelas lacunas em branco na nossa memória se vão para nunca mais. Aquele jeito de nos acolher, aquele olhar que diz o que as palavras não são capazes de expressar permanecerão pra sempre no bolso da alma.
Hoje, especialmente hoje, sofro. Sofro porque amei, porque minha memória insiste em lembrar tudo que vivi e não posso mais voltar. Lembro até de histórias que não vivi, mas que contaram. De uma menina, abandonada pelo pai e que por conta disso teve que abdicar do sonho de ser professora. De uma guerreira que teve que ser forjada no forno mais quente, no ambiente mais duro, na existência difícil e que por conta disso precisa construir os seus castelos sobre os sobrenomes (que lhe pertenciam, mas que nada mais significavam do que palavras, visto que do sobrenome só ficaram as palavras, ela era a gata borralheira a quem estaria destinada as tarefas que ninguém mais quisesse fazer, por considerarem menos relevantes), construindo sua narrativa mais baseada nos sonhos que nos fatos para poder aguentar o peso da existência. Da mulher que teve como espelho outra guerreira que lhe ensinou que maternidade é estender as asas sobre as crias e ter um coração do tamanho do mundo. De uma sonhadora que jamais desistia, nem se acovardava diante dos gigantes. Ainda me lembro dela indo fazer o curso da Casinha Feliz - aquilo era mais que um curso, era a ressurreição de um sonho adormecido no fundo da alma. Sair de casa, já mãe de filhos adolescentes, para realizar o sonho de menina (ser professora).
Sim, definitivamente morremos um pouco a cada dia, mas morremos um pouco mais quando as pessoas que amamos se vão. Mas também é verdade que assim como morremos um pouco quando elas se encantam, elas vivem um pouco em nós, e assim o sonho da vida eterna começa a tomar forma. Elas continuam a existir mesmo não estando mais entre nós.
Com esta memória viva quero aqui expressar a minha justa homenagem a esta menina, mulher, sonhadora e guerreira, Dona Eliete. Obrigado, mãe. Hoje eu lhe canto: “seu maquinista é favor parar o trem que hoje (quero homenagear) a quem tanto eu quero bem ...”