sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O AMOR E A LÁGRIMA

 

O AMOR E A LÁGRIMA

Seu Hipólito era homem muito querido e respeitado, também era conhecido por ter uma saúde de ferro. Mas um dia, de repente caiu em cima de uma cama com mal incurável. Por seu histórico de boa saúde todos esperavam uma cura tão repentina quanto a doença. Mas os dias se passavam e o velho Hipólito só definhava sobre a cama e gemia de dores. A crença numa cura era cada vez menor entre os amigos e até a própria família. A única que ainda se aferrava a esta crença era Elvira.

Numa manhã cinzenta a velha curandeira chamou Elvira e lhe aconselhou: Minha filha, seu pai só está esperando que você o libere. Desagarre dele e o deixe ir, pare com esse sofrimento. Hipólito jazia numa cama, morre-não-morre. Dias, semanas e meses naquela agonia e sofrimento. Atendido o pedido da velha curandeira, Hipólito partiu naquela mesma tarde. Como nos conta Adélia Prado: “amor é a coisa mais alegre. Amor é a coisa mais triste”. A vida deu Hipólito como um presente, mas quem nos faz sorrir de amor, de amor nos mata ao partir. A coisa mais triste e mais maravilhosa no amor é aprender a deixar ir, abrir mão de dominar, se recusar a prender.

O amor não tem gaiolas, nem correntes. Amor é vento: livre, leve e solto. O amor engaiolado é como o ar engarrafado, não serve, nem tem frescor e nem emburra jangadas para as aventuras em alto mar. Amar é não ter garantias, o amor não pode ser declarado à priori, como eterno. Amar é não ter livros de contabilidade, é não esperar reciprocidade, afinal amor não se paga. Amar é abrir mão pelo bem estar do ser amado mesmo que isso custe uma lágrima.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Lições da Noite


a noite estrelada
LIÇÕES DA NOITE

Dentre as lições do dia está o saber aproveitar para se alegrar (Salmo 30:5), para produzir (João 9:4). É o tempo da ação humana, sem necessidades de grandes reflexões, é a vida despreocupada. Na linguagem do sábio nele não há grandes lições existenciais (Eclesiastes 7:2), a própria experiência é capaz de prover o necessário.
A noite, como metáfora da existência, nos ensina muito mais. É a privação chegando aos seus limites mais extremos. As noites podem ser mortais para os principiantes impacientes, afinal a primeira noite longe de casa, do colo de pai e mãe gera insônias e aflições (Gênesis 28:11, 16-17). Aqui me permito parafrasear o poeta e afirmar que a noite é coisa para profissionais.
Os neófitos só conseguem enxergar o breu, que lhes apresenta os seus próprios medos mais profundos (Jó 3:25-26), os marujos de outros mares sabem enxergar para além da própria escuridão e vêem em cada luzeiro noturno um mundo e são milhares deles ali, acima das suas cabeças. Enxergar no breu, depois que o sol se vai, milhares de sóis, de possibilidades só é apreendido por quem está grávido de mundos, que como Sherazade vai escrevendo uma nova história a cada noite, se recusando a morrer.
Para enxergar o cosmos como uma grande tela pintada por mil e um Picassos é preciso ter perdido os medos e as ilusões e ser poeta/profeta, que constrói o mundo com sua palavra e ações. Um viajante de muitas noites aprendeu que a vida é cíclica onde os dias festivos são sucedidos por noites assombrosas em que não é possível fazer nada, apenas se entregar, contemplar e esperar. Esse viajante deixou escrito nalguma pedra, como referência para os próximos caminhantes: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria festiva vem ao amanhecer” (Salmo 30:5).
As noites não são pra sempre, como os desertos elas são escolas do espírito. A noite mata algumas ilusões, dentre elas, a de que os dias e a alegria duram pra sempre, ininterruptamente. O luto por estas ilusões que se foram deve ser vivido intensamente, mas não longamente. Quem alonga o luto prolonga a noite, a dor vira melancolia e a noite tende a pairar mais tempo que o necessário sobre as próprias cabeças e na alma. Tivesse Noé sido deixado lambendo as próprias feridas e o mundo não se estenderia para além da própria nau. A terapia vem quando o Criador lhe chama: “Sai da arca”, ou da cama e vem viver a vida, já é dia, planta a vinha e se alegra (Gênesis 8:16). Tivesse Elias sido reprovado no teste da noite da alma e teria sido sepultado numa caverna escura, mas Deus o trata questionando as razões de fazer aquela noite durar tanto, lhe designando que voltasse a vida, que saísse daquele quarto escuro e que deixasse o sol brilhar sobre a sua cabeça novamente (I Reis 19:13-15).
Encerro com uma lição de um outro peregrino de uma noite escura: “mas é claro que o sol vai voltar amanhã, mais uma vez, eu sei. Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã. ESPERA QUE O SOL JÁ VEM”.

domingo, 10 de maio de 2020

NINGUÉM MORRE UMA VEZ SÓ


A morte não sabe brincar. Todo dia eu a venço e no dia seguinte o jogo recomeça, mas o dia que ela ganha, o jogo acaba. Assim não tem graça. Não me proponho a falar da morte com pesar, nem como passagem para uma outra vida e nem nada que o valha. Quero, falar das mortes que tive que enfrentar antes de morrer. Por fim poderei, inspirado em Quincas Berro D’água, dizer quando a morte natural chegar: essa não é a primeira vez que morro.
Assim como no caso de Quincas, os outros podem decretar nossa morte. Se me lembro bem, na novela de Jorge Amado, a família decreta a morte de Quincas quando ele renuncia à vida que levava. Das mortes decretadas, pelo outro, e aqui me permito uma digressão - Jesus afirmou que isso era possível, ao dizer que quando construímos uma narrativa da vida do outro com a intenção de detratá-lo ou destruí-lo já foi cometido o assassinato[1], o matamos, a morte social, fruto dessa narrativa, está em alta em nossos dias.
De todas as mortes que já morri uma eu não consigo me acostumar, embora já a tenha experimentado algumas vezes, numa espécie de Déjà Vu. Me aconselha o sábio que “quando alguém disser alguma coisa a meu respeito que não corresponda à verdade, devo viver de tal forma que todos percebam que ele está mentindo”. Mas devo admitir que praticar a teoria do sábio, além de ser extremamente doloroso, é demorado e não há nenhuma garantia de que as pessoas ainda estarão prestando atenção quando a verdade vier à tona.
Poderia dizer que as mortes que morremos têm a função de nos permitir “reviver” mais sábios e, como diria Herzer, menina de rua e poetisa citada por Boff: “Eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver[2]”. A Bíblia dos Cristãos e Judeus diz que para se alcançar a sabedoria é preciso aprender a contar os dias[3], numa alusão ao aprendizado cumulativo, à famosa experiência de vida. O problema é quando somos românticos demais e cremos que as pessoas são diferentes e que agirão de formas diferentes em situações semelhantes, e temos que morrer muitas vezes e renascer outras tantas, num eterno retorno do mesmo[4].
A vida é uma grande brincadeira, no final o que conta é quantas gargalhadas dei, quantos momentos me surpreendi e perdi o fôlego, quanto amei ... Não será feita a conta de quantas vezes morri, mas de quantos matei numa tentativa vã de exorcizar a morte, que como eu disse não sabe brincar, basta ganhar uma vez e o jogo acaba.


[1] Mateus 5:22
[3] Salmo 90:12
[4] Nietzsche, Gaia Ciência.

Obrigado, MÃE


Existe uma fórmula para ser feliz: Não ame. Quem ama corre o risco de sofrer, de chorar sem razão, mas também de sorrir no meio de uma tarde de sol causticante, de viajar por espaços inimagináveis para lembrar de um gosto, de um gesto, de um sabor. Mas até isso nos faz sofrer (um sofrimento acalentado pela certeza de que é melhor sofrer de amor do que não amar).
Quem ama, morre um pouco quando pessoas amadas ficam encantadas. Morremos um pouco, parte de nós parte, histórias que completam aquelas lacunas em branco na nossa memória se vão para nunca mais. Aquele jeito de nos acolher, aquele olhar que diz o que as palavras não são capazes de expressar permanecerão pra sempre no bolso da alma.
Hoje, especialmente hoje, sofro. Sofro porque amei, porque minha memória insiste em lembrar tudo que vivi e não posso mais voltar. Lembro até de histórias que não vivi, mas que contaram. De uma menina, abandonada pelo pai e que por conta disso teve que abdicar do sonho de ser professora. De uma guerreira que teve que ser forjada no forno mais quente, no ambiente mais duro, na existência difícil e que por conta disso precisa construir os seus castelos sobre os sobrenomes (que lhe pertenciam, mas que nada mais significavam do que palavras, visto que do sobrenome só ficaram as palavras, ela era a gata borralheira a quem estaria destinada as tarefas que ninguém mais quisesse fazer, por considerarem menos relevantes), construindo sua narrativa mais baseada nos sonhos que nos fatos para poder aguentar o peso da existência. Da mulher que teve como espelho outra guerreira que lhe ensinou que maternidade é estender as asas sobre as crias e ter um coração do tamanho do mundo. De uma sonhadora que jamais desistia, nem se acovardava diante dos gigantes. Ainda me lembro dela indo fazer o curso da Casinha Feliz - aquilo era mais que um curso, era a ressurreição de um sonho adormecido no fundo da alma. Sair de casa, já mãe de filhos adolescentes, para realizar o sonho de menina (ser professora).
Sim, definitivamente morremos um pouco a cada dia, mas morremos um pouco mais quando as pessoas que amamos se vão. Mas também é verdade que assim como morremos um pouco quando elas se encantam, elas vivem um pouco em nós, e assim o sonho da vida eterna começa a tomar forma. Elas continuam a existir mesmo não estando mais entre nós.
Com esta memória viva quero aqui expressar a minha justa homenagem a esta menina, mulher, sonhadora e guerreira, Dona Eliete. Obrigado, mãe. Hoje eu lhe canto: “seu maquinista é favor parar o trem que hoje (quero homenagear) a quem tanto eu quero bem ...”

sábado, 11 de abril de 2020

Os dois lados da mesma moeda



Conspirar vem do latin e traz a ideia de respirar o mesmo ar, significando um ato da mais absoluta confiança. Para conspirar é precisar frequentar a mesma sala secreta, e guardar os mesmos códigos, segredos e planos. Quem conspira, confia a sua vida ao outro. Basta uma delação e a morte será certa. Neste sentido conspirar é sinônimo de confiança no seu estado mais puro e absoluto.
Também do latin vem a palavra traição. Trair é entregar algo que que lhe foi confiado e que pode prejudicar o outro. O irônico de duas palavras com significados tão distintos e opostos, é que em ambas a confiança é a base. Para que haja a traição é preciso haver anteriormente a confiança.
A traição é um ato/processo sórdido. É preciso lembrar de pessoas outrora amadas, de planos e sonhos com os quais também se sonhou com o desejo de se dar bem em detrimento do sofrimento dos outros. Para trair é preciso respirar outros ares, ir a outra sala secreta para delatar segredos, planos que ajudou a criar e o pior, pessoas que jurou amar, e via de regra, fazer a sua interpretação sem esquecer do ditado que diz que “quem conta um conto aumenta um ponto”, neste sentido todo traidor é mentiroso tanto na base como no topo. Traição é sórdida por ter como objetivo aplicar sempre a “lei do Gérson”. Enquanto conspirador usufrui, no caso da vitória da revolução, de lugar de destaque, e como traidor também usufrui, se a situação não mudar, com a manutenção do status quo e temos até lei privilegiando a "delação premiada", traidor recebendo benesses e status de herói.
Mas a traição também é reveladora, diferenciadora. O traidor, embora leve vantagem passageira, sempre terá que se enfrentar perante o espelho da vida ou terá que se esquecer de quem era, tornando-se um morto vivo. É diferenciadora por colocar cada qual no seu quadrado, por manifestar a diferença entre o digno e o indigno, não importando o espaço social que cada um ocupará após a traição. Jesus ao receber o indigno Judas, frequentador dos espaços de poder e aliado do poder que dantes queria derrubar, acena-lhe com o afeto mais puro e com palavras leais que o valorizam: “a que vens, amigo?” Enquanto Judas ao aproximar-se usa o beijo, arma de quem conspira, como senha da morte, como arma letal.
Conspirar e trair são os dois lados da mesma moeda: a confiança. Toda relação mais próxima sempre revelará qual dos lados prevalece na vida de alguém.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

É sexta-feira, meu Senhor está morto ...


É sexta-feira ... meu Senhor morreu!
Como bem disse Antonio Scurati sobre a nossa geração: “... a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade”. Somos seres da era do analgésico, dos ansiolíticos e da morfina. Desaprendemos a lidar com a dor. Por isso, sempre que possível nos entorpecemos, dormimos e como que num passe de mágica, passamos ao momento seguinte, da alegria.
Quando agimos assim perdemos a chance de tirar as lições preciosas que só são possíveis de aprender nos desertos, nas fornalhas e nas cruzes. O sábio diz: “melhor é ir à casa onde há luto, do que ir à casa onde há riso ... pois o rosto triste torna melhor o coração”. Não, não há aqui nenhum resquício de masoquismo, de gostar do sofrimento. Mas a sabedoria lhe ensinou que certas lições só podem ser aprendidas mediante a dor, que quem sofre se torna mais humano, mais solidário, menos egoísta.
Nas manifestações da páscoa cristã, nas comunidades evangélicas o espírito deste tempo, entorpecido, fica bem evidente. Há uma fixação no domingo da ressurreição em detrimento da sexta-feira da crucificação. Parece haver um horror em contemplar o Senhor morto. Os apóstolos não tiveram outra alternativa a não ser contemplar, chorar a perda, sofrer a agonia, viver à beira do desespero por causa da triste notícia de que o Senhor da Vida estava cravado numa cruz, morto.
A nossa tradição precisa resgatar isso, precisamos também viver essa dor, chorar essa perda e lamentar essa morte. "Hoje é sexta-feira, o Senhor está morto. Se está morto não há esperança, tudo é dor, sofrimento e confusão. Tudo em que cri e pelo que vivi não faz sentido!, poderia dizer qualquer dos apóstolos. Mas quem matou o Senhor? Nós o matamos, disse o Pensador. Eu e você. Ele foi cravado ali por causa de mim e de você. Foi por amor, João declara: “Deus amou de tal maneira ... que entregou seu Filho”. É ali, na cruz ensanguentada que vejo um amor que não tem como ser medido. Ali, na cruz ensanguentada, com o Senhor morto, vejo a gravidade daquilo que chamo de equívoco, errinho, falta ou mesmo pecado. Amo meu Senhor cravado naquela cruz, é ali que percebo o quanto Ele me ama. É ali que vejo como é grave o pecado que tão de perto me rodeia. É ali que percebo o que o pecado faria comigo se não fosse o amor extraordinário de Deus por mim. Eu preciso ficar ao pé da cruz, eu preciso contemplar o meu Senhor agonizando e declarando o seu perdão por mim, por nós. É ali, na Cruz ensanguentada que posso ouvi-lo dizendo ao Pai que está completa a sua obra e que Ele agora entrega o seu espírito.
Preciso tomar o seu corpo e levar ao sepulcro. Necessito viver o sábado do silêncio ... da espera. Num tempo onde as pessoas não têm tempo, preciso viver a agonia da espera. Tempo de não ter nada além de uma promessa. Tempo em que os fatos se sobrepõem às “verdades”, onde a dor apaga toda e qualquer possibilidade de virada. É tudo isso que dará algum sentido ao que chamo de futuro, é a sexta-feira da morte e o sábado da espera que tornam a domingo da ressurreição tão extraordinário.
Sem a cruz ensanguentada, sem o Senhor morto e sem o enterro, o sepulcro vazio não significa nada. A alegria da ressurreição só faz sentido para quem viveu o desespero da morte.