A morte não sabe brincar. Todo dia eu
a venço e no dia seguinte o jogo recomeça, mas o dia que ela ganha, o jogo
acaba. Assim não tem graça. Não me proponho a falar da morte com pesar, nem
como passagem para uma outra vida e nem nada que o valha. Quero, falar das
mortes que tive que enfrentar antes de morrer. Por fim poderei, inspirado em
Quincas Berro D’água, dizer quando a morte natural chegar: essa não é a
primeira vez que morro.
Assim como no caso de Quincas, os
outros podem decretar nossa morte. Se me lembro bem, na novela de Jorge Amado,
a família decreta a morte de Quincas quando ele renuncia à vida que levava. Das
mortes decretadas, pelo outro, e aqui me permito uma digressão - Jesus afirmou
que isso era possível, ao dizer que quando construímos uma narrativa da vida do
outro com a intenção de detratá-lo ou destruí-lo já foi cometido o assassinato[1],
o matamos, a morte social, fruto dessa narrativa, está em alta em nossos dias.
De todas as mortes que já morri uma
eu não consigo me acostumar, embora já a tenha experimentado algumas vezes,
numa espécie de Déjà Vu. Me aconselha o sábio que “quando alguém disser
alguma coisa a meu respeito que não corresponda à verdade, devo viver de tal
forma que todos percebam que ele está mentindo”. Mas devo admitir que praticar
a teoria do sábio, além de ser extremamente doloroso, é demorado e não há
nenhuma garantia de que as pessoas ainda estarão prestando atenção quando a
verdade vier à tona.
Poderia dizer que as mortes que
morremos têm a função de nos permitir “reviver” mais sábios e, como diria
Herzer, menina de rua e poetisa citada por Boff: “Eu só queria nascer de novo,
para me ensinar a viver[2]”.
A Bíblia dos Cristãos e Judeus diz que para se alcançar a sabedoria é preciso
aprender a contar os dias[3],
numa alusão ao aprendizado cumulativo, à famosa experiência de vida. O problema
é quando somos românticos demais e cremos que as pessoas são diferentes e que
agirão de formas diferentes em situações semelhantes, e temos que morrer muitas
vezes e renascer outras tantas, num eterno retorno do mesmo[4].
A vida é uma grande brincadeira, no
final o que conta é quantas gargalhadas dei, quantos momentos me surpreendi e
perdi o fôlego, quanto amei ... Não será feita a conta de quantas vezes morri,
mas de quantos matei numa tentativa vã de exorcizar a morte, que como eu disse
não sabe brincar, basta ganhar uma vez e o jogo acaba.
[1]
Mateus 5:22
[2]
Boff, Leonardo, Oficialmente Velho. https://www.recantodasletras.com.br/mensagens/1535809
acesso em 07/05/2020 às 00:31.
[3]
Salmo 90:12
[4]
Nietzsche, Gaia Ciência.