quinta-feira, 17 de outubro de 2024

AMO PORQUE AMEI

 

A vida é feita de recomeços. Vivemos estágios que se sucedem, mas também vivemos a experiências de rompimentos, de retrocessos e de recomeços. Todas estas experiências são dolorosas e muitas vezes tentamos evitá-las, mas elas são absolutamente necessárias ao crescimento, à evolução. Já confessei diversas vezes que sou piracêmico, e isso traz consigo a verdade incontestável que amo porque amei. Simplesmente não consigo desgostar, desamar e menos ainda odiar o que ou quem já amei.

Amo Itinga da Serra embora tenha vivido muito mais tempo longe dela do que nela. Estabeleci relações mais profundas e duradouras fora de lá do que com seus cidadãos. Mas há algo em mim que me faz olhar a praça e enxergá-la como um oásis, que me faz enxergar em suas ruas pegadas que me levam de volta ao paraíso. Nada aconteceu nos últimos anos que possa me fazer querer revisitar aquele lugar, mas há algo que transcende o tempo e o espaço e que me faz desejar e mais, me faz precisar de um retorno para que minha alma seja animada novamente. Amo porque amei.

Quando o casamento se rompeu e nas redes sociais nada apaguei fui arguido porque permanecia com fotos da minha antiga companheira, ao que respondi que simplesmente não conseguiria apagar tudo de maravilhoso que vivi, mesmo que nos últimos tempos o relacionamento tivesse se desgastado, ou seja, continuava e continuo amando porque amei. O fim do relacionamento naquele formato não implicava em desamor em intensidade semelhante ao amor que nos uniu até ali, não significava nem mesmo que quisesse esquecer tudo que vivi, porque isso implicaria em apagar tudo que recebi de presente e que me ajudaram a ser quem sou nas últimas décadas.

Durante o período de acirramento político vivido no Brasil vi amigos queridos, parentes e pessoas próximas optarem por uma ideologia diferente da minha, alguns laços ficaram tão fragilizados que os relacionamentos praticamente deixaram de existir, mas dos meus amigos ainda me lembro com afeto e desejo piamente que passado o vendaval possamos restabelecer os laços e vínculos que me são tão caros. Pode ser que alguns deles jamais sejam refeitos, infelizmente. Mas ainda que isso aconteça, carrego no bolso da minha alma as memórias, afetos e sonhos compartilhados. Digo que jamais ousaria proferir qualquer palavra maldita contra qualquer um/a deles/as. Amo meus amigos, minhas amigas que perdi, porque os/as amei. Mia Couto, com sua lucidez poética afirma: “Amar é um verbo sem passado. Uma vez tendo amado nunca mais se deixa de amar. Amar e viver são verbos sem pretérito. Não perdemos nunca os que amamos. O amor está para além dessa contabilidade”.

Pensando essas coisas tentei encontrar a raiz de um afeto assim, quase masoquista, de continuar amando quem me desama, quem já me esqueceu ou aquilo que a rigor já nem existe mais. E em meu socorro vem um pensar, ou melhor, um especular teológico. A teologia é dessas coisas que a vida me deu, que me ajudam a ver a existência com outros olhos. E fiquei especulando se este amor não teria base no próprio Deus. Imaginando estas coisas lamentei que durante o tempo da tradição oral tenha se perdido a fala de Adão sobre os dias que antecederam à saída do paraíso. Talvez tenha se perdido porque alguém com extremo senso de realidade, extremamente racional tenha interpretado aquelas falas como fala-ciosas. Os relatos das tardes quentes na Vila Édem, embaixo da mangueira degustando seus frutos, os banhos de rio – ora no Tigre, ora no Eufrates. As brincadeiras de pique-esconde, enfim, a vida pulsante e a relação construindo memórias afetivas e de repente, num dia qualquer o relacionamento se rompe, não mais o encontro, não mais as festas, não mais o afeto. Aquele lugar outrora O Paraíso, tornou-se “sem forma e vazio”. Eu falei que a extrema racionalidade, o zelo exacerbado e o extremo senso de realidade tenderiam a nos fazer desconfiar do relato.

Deus nos ama porque nos amou. Há uma relação cujas histórias nos foram apagadas, mas continuam a existir enquanto memória afetiva, e talvez por isso construímos catedrais, criamos as religiões, como memoriais da ausência, como desejo de voltar, de estar novamente na relação como era dantes. Mas Deus, onisciente, se recorda de cada um desses dias, dos tempos imemoriais, continua a nos amar, não consegue nos desamar. Poderoso que é, desejou, planejou e executou o sonho de nos ter de novo no seu Jardim para que a brincadeira recomece.

Enquanto este dia não chega, por conta de tanto afeto envolvido na relação divino-humana fez, segundo Alberto Caieiro, Jesus Menino vir viver como uma criança igual a todas as outras, e “hoje vive na minha aldeia comigo. Uma criança bonita de riso natural”.  Tudo que peço pra que a brincadeira recomece, para que o amor que tive se atualize é a mesma oração de Adélia Prado: “Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande ...”

terça-feira, 15 de outubro de 2024

MUDE

 A ampulheta já consumiu um pouco mais da metade da areia e o demônio lhe apareceu, como diria Nietzsche, e lhe deu a notícia de que assim que a ampulheta fosse virada iria tornar a viver tudo, nos mínimos detalhes, que já vivera, sem tirar nem por. Acordou desesperado, suando e ofegante, não poderia haver pesadelo pior e nem castigo mais cruel, seria o inferno dos infernos. Pela primeira vez sentira o peso real da sua existência. Qual seria o peso de uma alma? A sua parecia regida pelas leis da física, atraia a si os objetos mais pesados, na mesma medida em que, como a Torre Inclinada de Pisa, se sentia atraído inexoravelmente para o chão. Existir assim eternamente lhe parecia tão cruel.

Insensato é quem fazendo as coisas da mesma forma espera resultados diferentes. Pôs-se a pensar como gostaria de viver dali por diante. Seu padrão cerebral lhe dizia que ali é um inferno, mas ao menos é um inferno conhecido. Se a escuridão ali é imensa mas é um onde já sabe como se mover. Mas dentro de si há algo que anseia alçar as velas e se arriscar pelo mar desconhecido, que tanto ama. Sentiu a alma leve, pela primeira vez, ela parecia ter realmente apenas 21 gramas. Como um bailarino, dançou, ouvia uma música com os ouvidos que parecia ter nos dedos do pé. Imaginou como seria aquele tempo que resta, como seria realmente viver algo novo, sua alma contente consigo, sorriu.

Mas um peso abrupto o arrastou de volta ao chão. Seria aquilo possível ou não passaria de um delírio? Nosso cérebro adaptado torna-se nosso Capitão do Mato. Assim como no passado aceitamos a “verdade” de que a sangria do paciente era terapêutico, que os espíritos maus “colocam” doenças nas pessoas e que o fedor “espanta” espíritos, o que hoje parece risível. Também a forma como concebemos a existência, socialmente, e que nos parece impossível viver de uma outra forma, nos tem feito carregar um fardo insuportável no presente. Mas a cena do sonho estava vívida: era a vida que gostaria que se repetisse eternamente?

Anelou por uma outra vida possível, pesou o preço a ser pago pelo rompimento com as regras de uma sociedade de desempenho e de altíssima competição. Se deu conta de que o peso da alma estava ligado diretamente à escolha que teria que fazer naquele exato momento. A vela tremulava e no horizonte já podia ver a terra se distanciando enquanto calçava suas sapatilhas ...