terça-feira, 15 de outubro de 2024

MUDE

 A ampulheta já consumiu um pouco mais da metade da areia e o demônio lhe apareceu, como diria Nietzsche, e lhe deu a notícia de que assim que a ampulheta fosse virada iria tornar a viver tudo, nos mínimos detalhes, que já vivera, sem tirar nem por. Acordou desesperado, suando e ofegante, não poderia haver pesadelo pior e nem castigo mais cruel, seria o inferno dos infernos. Pela primeira vez sentira o peso real da sua existência. Qual seria o peso de uma alma? A sua parecia regida pelas leis da física, atraia a si os objetos mais pesados, na mesma medida em que, como a Torre Inclinada de Pisa, se sentia atraído inexoravelmente para o chão. Existir assim eternamente lhe parecia tão cruel.

Insensato é quem fazendo as coisas da mesma forma espera resultados diferentes. Pôs-se a pensar como gostaria de viver dali por diante. Seu padrão cerebral lhe dizia que ali é um inferno, mas ao menos é um inferno conhecido. Se a escuridão ali é imensa mas é um onde já sabe como se mover. Mas dentro de si há algo que anseia alçar as velas e se arriscar pelo mar desconhecido, que tanto ama. Sentiu a alma leve, pela primeira vez, ela parecia ter realmente apenas 21 gramas. Como um bailarino, dançou, ouvia uma música com os ouvidos que parecia ter nos dedos do pé. Imaginou como seria aquele tempo que resta, como seria realmente viver algo novo, sua alma contente consigo, sorriu.

Mas um peso abrupto o arrastou de volta ao chão. Seria aquilo possível ou não passaria de um delírio? Nosso cérebro adaptado torna-se nosso Capitão do Mato. Assim como no passado aceitamos a “verdade” de que a sangria do paciente era terapêutico, que os espíritos maus “colocam” doenças nas pessoas e que o fedor “espanta” espíritos, o que hoje parece risível. Também a forma como concebemos a existência, socialmente, e que nos parece impossível viver de uma outra forma, nos tem feito carregar um fardo insuportável no presente. Mas a cena do sonho estava vívida: era a vida que gostaria que se repetisse eternamente?

Anelou por uma outra vida possível, pesou o preço a ser pago pelo rompimento com as regras de uma sociedade de desempenho e de altíssima competição. Se deu conta de que o peso da alma estava ligado diretamente à escolha que teria que fazer naquele exato momento. A vela tremulava e no horizonte já podia ver a terra se distanciando enquanto calçava suas sapatilhas ...

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